JOSÉ PAULO ALVIM EM CRÔNICAS: O CURTUME

O CURTUME.

(Aymoré Alvim, ALL, APLAC, AMM).

Era sempre assim. Para evitar muita zoada lá em casa, Seu Zé Alvim colocava-me em uma oficina de aprendiz. Foi assim que passei pela de ferreiro de seu Paulo Bebeu, de barbeiro de seu Zé Costa, de eletricidade de seu Malaquias e seu Ataliba, de marceneiro de seu Benedito e, tais atividades, iam até o fim das férias. Moema ia sempre para a casa de seu Leudes aprender com a Sra. Doninha fazer renda em almofada de bilros e bordados.

Havia iniciado as férias de julho de 1948 e, como sempre ocorria, dessa vez eu fui para a oficina de sapateiro de Seu José Pedro Amengol.

Mamãe chamou Seu Benedito marceneiro e encomendou-lhe um banquinho para mim. No dia marcado, peguei o banquinho e fui para a oficina.

- “Bom dia! Sua benção, Seu Zé”. Esse era o costume naquela época.

- Deus te abençoe. Aguarda um pouco que já mando te mostrar o que vais fazer.

- Mestre Galho, Aymoré é nosso novo aprendiz. Nesses primeiros dias, ele vai aprender a bater sola.

Entregaram-me uma peça de ferro, no formato da base de um ferro de engomar, com pequena escavação, na face inferior, para acomodá-lo sobre a coxa, próximo ao joelho.

Quase duas semanas se passaram e eu não saia daquele negócio. O joelho direito já não aguentava mais. Era bater sola de manhã e de tarde. Eu tinha vontade era de brunir sapatos. Esse dia chegou. O pessoal saiu para almoçar e eu fiquei terminando de bater um pedaço de sola. Peguei, então, o brunidor e comecei a passar em dois pares de sapatos que seriam entregues, em dois dias. Depois fui embora.

À tarde, quando cheguei, a confusão estava formada. Seu Zé Pedro soltava fogo pelas ventas.

- Seu Aymoré, você viu quem bruniu esses sapatos?

O mestre Pêra se adiantou...

- Ele foi o único que ficou aqui.

- Então, seu Aymoré, você viu ou não viu.

- Ver, mesmo, eu não vi. Mas sei quem foi.

- Então desembucha, pequeno.

- Fui eu. Só queria adiantar o serviço.

- E como tu estás dizendo que não sabes quem foi?

- Saber eu sabia. Eu disse que não vi. Como é que eu poderia me ver?

Nessa hora, seu Zé perdeu a esportiva. Avançou para mim e me deu dois “cascudos”.

- Pequeno, tu me respeitas.

O pessoal se levantou e o agarrou.

- Não faça isso, seu Zé, é só uma criança.

- Esse capeta não tem nada de criança. Ele estragou dois pares de sapatos que devo entregar depois de amanhã.

Eu comecei ensaiar um choro.

- Vamos, rapaz. Vou te levar prá seu Zé Alvim.

- Espera aí, seu Zé. Lá prá casa, agora, não. Vamos fazer um acordo. O senhor dá mais um “cascudo” e a gente esquece tudo. Eu só queria ajudar.

Aí, o pessoal começou a rir e o ambiente foi melhorando.

- Tudo bem, Aymoré. A partir de amanhã, tu vais para o curtume com João Preá.

No dia seguinte, cheguei e fui passando direto para o curtume.

- Bom dia, João Preá.

- Como é, menino, João Preá? Mais respeito. Aqui, é seu João Preá. Eu não sou teu “pareceiro”. Olha, aqui o serviço é sério. Pega essa vara e vai mexendo esses couros, devagar, senão o fedor aumenta e Zé Pedro não vai gostar.

Realmente, o fedor era insuportável. Pensei, comigo mesmo: isso só pode ser castigo de seu Zé. Vou dar um jeito de cair fora daqui.

Dois dias depois...

Continua mexendo, devagar. Eu vou tomar água e já volto. Falou João Preá.

Daí há pouco, enfiei a vara no tanque de curtição e revirei os couros com toda a força que dispunha. Um fedor horrível se espalhou por todo lado.

- Virgem, Zé Preá, o que é isso, rapaz?

- Ora, Seu Zé, só pode ser aquele capeta de Zé Alvim.

Não demorou muito, lá vem seu Zé com João Preá.

- Pequeno dos infernos, que diabos tu estás fazendo?

- Eu só afundei os couros, devagarzinho, prá mergulhar bem.

- Tá bom, tá bom. Eta! Pequeno, tu és muito atentado. Tu me foste mandado por encomenda. Larga isso. Vá mesmo lá pra dentro bater sola. Não vejo a hora dessas tuas férias acabarem. Só parece que foi praga de Zé Alvim.

Voltei e bati sola até o fim do mês, quando as férias acabaram. Não aprendi fazer sapato, mas bater sola... é comigo mesmo.

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OBSERVAÇÃO: José Paulo de Carvalho Alvim (Zé Alvim), é patrono da cadeira de número 3 da APLAC, que teve por primeira ocupante, sua filha, a especialista em parasitologia, a saudosa Moema de Castro Alvim. Farmacêutico nascido em 10/01/1981, em Codó-MA, radicado em Pinheiro-MA, onde fundou a Pharmácia da Paz, a única da região no início do século XX, que tantos pinheirenses socorreu. Por ocasião da aproximação dos 130 anos do seu nascimento, publica-se uma série de crônicas feitas pelo acadêmico Aymoré Alvim (filho de Zé Alvim), as quais fruto da educação recebida no convívio familiar e da observação do exercício profissional  paterno. São reminiscências que revelam costumes, cenários e particularidades de um povo e de uma cidade provinciana, que outrora era Vila de Santo Inácio do Pinheiro.

 

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